VAZIO. A ARTE DO NÃO ESTAR.

Era 13 de fevereiro de 2023, o dia estava raiando e eu prestes a fazer a viagem mais longa da minha vida, pra cumprir uma das missões mais dolorosas e sagradas que eu já vivenciei. Parti da cidade de Serra Negra, na região das águas no interior do Estado de São Paulo para a cidade de São Carlos, onde meu pai me aguardava na Santa Casa para que eu o levasse à sua residência.

A distância entre essas duas cidades do mesmo Estado demanda cerca de 3h para percorrê-la, e a distância da Santa Casa à residência de meu pai não demanda mais do que 15 minutos, o que não seria nada de mais se não fosse pelo motivo que fez desse trajeto uma eternidade.

Filho de imigrantes libaneses, meu pai foi sempre um peregrino em busca de algo novo pra protagonizar no mundo. Isso o levou a muitas viagens de trabalho, passando mais tempo fora de casa do que com minha mãe e seus 3 filhos, eu e minhas duas irmãs. Então, mais ausente do que presente, ele criou o hábito incansável de nos ligar todos os dias e garantir uma pequena fala ao telefone com cada um dos filhos. Nesse momento, suas palavras muitas vezes não passavam de um “Como você esta?” ou “Seu dia está sendo bom?”, sempre seguido por um “Eu amo você e logo estarei em casa”.

Até onde eu tenho memória, isso sempre foi assim. Pai viajante. Despedidas semanais. Ligações diárias. Um pequeno momento para ouvir os filhos e alimentar a presença mesmo que distante.

Sim, ele queria nos ouvir todos os dias. E estou falando de tempos em que as ligações de longa distância dependiam de telefonistas para conectar os fios e fazer possível esse encontro de vozes. Isso poderia levar horas pra se viabilizar. Tempos sem celular, sem DDD, e um custo altíssimo de telefonia. Mas nada disso foi barreira para que ele nos ouvisse todos os dias.

Hoje, depois de três ex-casamentos (não recomendo isso pra ninguém) e três filhos (recomendo isso pra todos), entendo o efeito dessa prática do meu pai no meu comportamento como pai afinal, com um filho de cada casamento, estou sempre me despedindo de alguém. Semanalmente.

O tempo passa e a dor da despedida continua a mesma. Filhos crescem e a dor da despedida continua a mesma. A saudade está sempre em estado transbordante.

Então, a prática que recebi como filho, pratico como pai. Ligo para os meus filhos sempre, mesmo que seja pra ouvi-los dizer: “Tá tudo bem aqui!”. Claro que em tempos de WhatsApp tudo fica mais fácil, pois dá pra compartilhar a vida quase que em tempo-real. E isso é simplesmente sensacional!

Faço isso pois entendo que a ausência é o melhor lugar pra exercitar a presença e nutrir o encontro da volta. Entendo que o vazio, que permanece no durante, pode ser preenchido no antes e no depois, transformando a saudade em fortalecimento das relações.

No lugar de alimentar o vazio com sensações de abandono, desistência, desimportância, descaso e insegurança, a prática de meu pai sempre alimentou a saudade, o interesse, a segurança, a importância. E ela se deu sempre enquanto ele não estava. O não estar que enriquece o estar. O vazio não preenchido que preenche e fortalece a relação.

Não sei onde meu pai aprendeu isso, mas eu aprendi vendo ele fazer. Um fazer que necessitou superar muitas barreiras. Um fazer que não fazia parte do senso comum. Um fazer que tinha tudo pra não acontecer. Mas aconteceu. Intensamente. Ricamente. Marcantemente.

Eu te agradeço com muita admiração pelo que você deixou dentro de mim, meu pai!

Então, foi assim que eu cheguei na manhã do dia 13 de fevereiro de 2023.

Meu pai vinha tratando-se de uma severa doença sanguínea desenvolvida logo após a primeira dose da vacina do COVID da Astra Zeneca, que exigiu inúmeras transfusões e quimioterapias semanais por cerca dois anos e meio até que, sem efeitos positivos em sua saúde, ele mesmo solicitou a interrupção do tratamento para que pudesse descansar em sua casa, ao lado de minha mãe. E eu, filho mais velho, fiquei incumbido de sustentar esse campo e acompanhá-lo no trajeto que marcou o fim de uma tentativa de cura e o início de um processo paliativo.

Dai, envolvido por uma avalanche de sentimentos dúbios, parti. Parti para a Santa Casa de São Carlos pegar a pessoa que caminhou ao meu lado por toda a minha vida e que, mesmo quando ausente se fazia presente.

Levá-lo para casa e sentir que a sua última ligação chegaria em breve é algo impossível de descrever.

Em 19 de fevereiro de 2023 às 20h48, sua mensagem foi para perguntar sobre o meu filho: “Notícias do Bento?”. E eu respondi: “Sim, pai! Ele está comigo em SPaulo. Entrou no antibiótico hoje pela manhã. Estamos acolhidos na casa da Bia”. Esse foi o último contato de um pai super debilitado, pra saber da saúde do neto. Duas semanas depois, já completamente inconsciente, meu pai faleceu ao lado de minha mãe. E eu, que amava suas ligações, continuo com seu número guardado no vazio silencioso do meu celular. Porque onde tem alguém que te espera, reside a oportunidade de nutrir a saudade, a importância, a segurança, a presença e o reencontro.

Foto editada do original por @aescutadoolhar

@mau.curi

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